Edição #1 – Uma alquimia para ressignificar a palavra
Como reconstruir caminhos não percorridos depois das redes sociais?
Quatorze anos atrás Zadie Smith escreveu, em um ensaio chamado Generation Why, a sua perspectiva sobre o Facebook — e por extensão a sua perspectiva sobre todas as redes sociais. Em certo ponto do ensaio, nos deparamos com a seguinte construção:
“Sonho com uma Internet que atende um tipo de pessoa que não existe mais. Uma pessoa privada, uma pessoa que é um mistério, para o mundo e — o que é mais importante — para si mesma”.
Em sua delicadeza própria de uma boa escritora de ficção, interessada nas nuances do ser humano, ela não poderia estar mais certa. Uma pessoa não é uma platitude, instantaneamente classificável. Nossas motivações e condicionamentos são tantos que depurar e articular as nossas ideias e as nossas emoções exige tempo, espaço, esforço, privacidade.
E, entretanto, vivemos e endossamos a economia da atenção: a ânsia e a recompensa por dizer o que pensamos, a redução do intervalo entre sentir, pensar e dizer, a cobrança – interna e externa – de nos pronunciar sobre questões que muitas vezes ainda não foram bem articuladas dentro de nós. Me preocupa que os escritores, exatamente as pessoas que deveriam estar atentas às transformações do comportamento e da linguagem, caíram nesse engodo sem nenhuma resistência, achatando as pessoas e a si mesmas, acreditando em uma versão empobrecida de todas as coisas.
Tenho lido e escutado com alguma frequência o desabafo de escritores, jornalistas e outras pessoas inteligentíssimas, pessoas que desenvolveram ao longo da vida um profundo apreço pela palavra, dizerem que, nos últimos tempos, quando decidem se concentrar para escrever se sentem cansadas, repetitivas, sem ter o que dizer, sem encontrar dentro de si as palavras, a motivação, a inspiração, a disciplina… ou seja lá o que for preciso para que elas possam fazer o que sempre souberam fazer: escrever. E quer você chame o fenômeno de bloqueio criativo, depressão, estresse crônico, o diagnóstico individual também é uma visão reduzida de um problema bem mais amplo e social.
Exatamente como todas as outras pessoas, vamos nos perdendo exaustos nessa grande feira das atenções, mas em nós a questão latente sobre a desvalorização cambial da palavra é corrosiva. E imersos nessa lógica distorcida da vida, o pessimismo é engatilhado: de que adianta dizer, se a palavra perde cada dia mais o seu valor de troca, de reflexão conjunta; se as palavras e a ideia de comunidade foi cooptada e distorcida; se as pessoas estão sendo homogeneizadas e apartadas por algoritmos; se somos impulsionados a consumir mais e mais e a produzir segundo uma estética, uma pauta, um formato específico? Que energia nos resta para digerir tudo isso, para propor reflexões originais e condizentes com a nossa verdade? Que energia nos resta para saber qual é a nossa verdade? O que acontece quando tudo se reduz a uma única palavra (conteúdo), a uma única persona (o avatar), a um único latifúndio (as redes sociais)?
Enquanto escrevo me deparo com o problema: só ter essas mesmas palavras depreciadas para dizer o que eu penso, só ter esse espaço coletivo para compartilhar pensamentos e muitas vezes desacreditar da efetividade do gesto. Melhor deixar tudo isso em um caderno, em um arquivo de texto? Melhor reduzir isso a pouquíssimos caracteres, incluir sarcasmo e torcer para o que escrevi se mescle à pauta do dia? Melhor seguir a pauta do dia? Já foi mais fácil escrever. Já me senti mais livre, mais produtiva, mais motivada. Também estou cansada. Preciso criar estratégias para não ficar na vertigem das telas, para me concentrar nos desejos, para escrever aquele livro, aquele conto, aquele e-mail. Mas sei que não é um problema exclusivamente meu. É um problema nosso. E isso muda tudo, mesmo que não mude imediatamente nada.
Obrigados ao confinamento em nossos avatares, aos formatos reduzidos, preocupados demais com as nossas marcas pessoais, empobrecendo financeira e cognitivamente, vendo as nossas expressões distorcidas, ficamos sem palavras. Ficamos sem palavras, principalmente, ao perceber a palavra em descrédito, ao perceber a nossa responsabilidade pela descredibilização da palavra — e mesmo assim, continuamos falando, falando e falando sem parar, consumindo, consumindo e consumindo, sem realmente criar um espaço para que brote a palavra, para ressignificar a palavra. Talvez essa seja a raiz da apatia, do cansaço e do silêncio que nos encontramos nesse exato momento. Sobretudo nós, escritores.
“Quando um ser humano se torna um conjunto de dados em um site como o Facebook, ele ou ela é reduzido. Tudo encolhe. Caráter individual. Amizades. Linguagem. Sensibilidade. De certa forma é uma experiência transcendente: perdemos nossos corpos, nossos sentimentos confusos, nossos desejos, nossos medos. Isso me lembra que aqueles que ficam enojados com o que consideramos um senso de identidade liberal-burguês superinflado devem ter cuidado com o que desejamos: nossos eus desnudados em rede não parecem mais livres, eles apenas parecem mais dominados”.
É nesse momento que volto ao ensaio de Zadie Smith, tentando retraçar o caminho que nos trouxe até aqui para entender o óbvio: tecnologias não são neutras. Diferentes tecnologias incorporam diferentes filosofias, e essas filosofias, à medida que se tornam onipresentes, tornam-se invisíveis.
Não estar isento de um sistema de modificação cognitivo-comportamental tem as suas consequências: redução da atenção, apodrecimento cerebral (brain rot), falta de empatia, narcisismo, vício em altas doses de dopamina… e a lista poderia continuar, você bem sabe. Todos esses assuntos estão sendo falados à exaustão. Foi o pacto que fizemos alguns anos atrás, um pacto que modifica e nos modificou profundamente. Um sistema que alterou o próprio funcionamento das nossas vidas nos últimos tempos e que, infelizmente, não se reduz às redes sociais. É onipresente. É lamentável. Como nos lembra Neil Postman, ainda na década de 1980: estamos nos entretendo até a morte.
Sendo bem honesta, pode até ser que algumas expressões artísticas ganhem enormemente com o desenvolvimento tecnológico – a música, por exemplo, se não entrarmos na questão da baixa remuneração das plataformas, nunca esteve tão boa em termos de qualidade – mas a literatura parece não ter se beneficiado tanto assim. Se beneficia, é claro, das possibilidades de acesso e circulação, mas está longe de se beneficiar naquilo que constitui a sua atividade central e a sua potência: a leitura, a concentração, a reflexão, a depuração, a conexão.
Conexão: exatamente uma das palavras distorcidas, certo? Nos fizeram acreditar que conexão é fazer o mínimo, dar um like, reagir, acumular um número cada vez mais alto de possibilidades de contato para uma conveniência. Para a literatura, entretanto, conexão é outra coisa. É a partilha íntima entre um autor e um leitor, é um verso que traduz um sentimento, é um personagem que nos acompanha mesmo depois de fechar o livro, é uma história que nos ensina caminhos possíveis. A literatura (ao menos a boa literatura) nos conecta com nuances das personae, não com uma máscara imutável e perfeita.
A boa notícia é que somos modificados por tudo que nos rodeia — e isso é maravilhoso! Imagina que tédio seria se as pessoas não se permitissem ser influenciadas por nada ou por ninguém? Eu adoro descobrir novas perspectivas nas conversas com amigos, nos livros que leio, nos filmes que vejo, assim como adoro ler alguma coisa que escrevi anos atrás e pensar: “não, eu não acredito mais nisso… eu não sou mais essa pessoa aqui”. Aliás, eu me sinto uma pessoa altamente influenciada por tudo que me rodeia. Passo semanas obcecada e monotemática… e, sinceramente, acredito que todo escritor seja mais ou menos assim, uma esponja, um antropófago voraz, rs!
Mas exatamente porque somos altamente modificados por tudo que nos rodeia, surge a questão mais importante de todas: afinal, quem você permite que te influencie e te modifique? Talvez deveríamos aprender com os últimos anos, reler as linhas miúdas do contrato e tratar a nossa cognição – a única coisa que temos, a raiz do nosso trabalho – como o bem precioso que é (tanto que vem sendo explorada, tratada como uma commoditie, enriquecendo meia dúzia de bilionários).
Existe um antídoto para esse estado de coisas — e que ele precisa voltar a ser produzido e distribuído. Um antídoto que nos relembra que somos complexos, que o mundo é cheio de nuances. Um antídoto que evita projeções, julgamentos, tão presentes na era do cancelamento. Eu tenho tentado reaprender a receita dessa potente alquimia entre a curiosidade, o interesse genuíno, a observação, a escuta, a paciência, o cuidado, o risco e… o mistério (sim, o mistério, esse elemento que a Zadie Smith já sentia falta, quatorze anos atrás, quando só estamos começando a nossa era de reality shows e broadcasting da vida).
Reaprender a combinar esses ingredientes é a nossa única saída, porque cria espaço e tempo para reconectarmos a palavra aos seus significados, cria possibilidades para reconstruirmos caminhos não percorridos — caminhos que foram violentados por uma lógica que nos disseram que era o único caminho possível, um caminho inevitável.
Mas tudo isso não passa de uma mentira.
Desdobramentos
Durante a escrita desse texto, além do ensaio da Zadie Smith sobre o Facebook, convivi com diversas entrevistas com ela, mas o episódio de The Ezra Klein Show foi realmente inspirador. A leitura dos livros Doppelgänger - Uma viagem através do mundo-espelho de Naomi Klein (obrigada pela indicação, Carla!) e Amusing ourselves to death de Neil Postman (infelizmente sem tradução para o português) ecoam por aqui também.
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Juliana Bratfisch
reflexão super necessária !!!!
APLAUDINDO DE PÉ ESSE TEXTO!!!!!! (em caps mesmo)